quinta-feira, abril 26, 2007

Uma índia, um olhar, um encontro, uma despedida




Cambodia


"Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente
Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido cada dia mais curto" (...)

Minha História
by Chico Buarque


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O telefone toca. Aguardo um instante antes de decidir se estou sonhando ou acordado. Prefiriria a primeira opção, mas o segundo toque não deixa dúvidas. Estico o braço na direção do som. Tateio e consigo encontrá-lo. Alô. Sim. É, mais um dia. Obrigado, valeu tchau. Ah, que horas são? Merda. Quer dizer, obrigado. Tchau. Repouso-o sobre o gancho. Resolvo abrir um olho, um pedacinho apenas. Último dia naquela cidade. No dia seguinte deveria pegar o barco e descer o rio, tempo de ir-me daquelas bandas. Com preguiça, e com ressaca, consigo chegar até o banheiro. Minutos mais tarde é possível emergir com uma aparência quase humana. Me visto, pego a carteira e o bloco de notas. Pego um taxi com destino à feira local. Meu guia de viagem indicava um bom local para visitar e recomendava comer em alguma das barraquinhas da redondeza. Chego ainda meio zonzo, mas consigo encontrar uma lanchonete onde o taxi me abandonou. Peço um suco de frutas da região, uma daquelas que não se parecem com nada que você já experimentou antes. Pego e pago. Saio. O calor e a umidade castigam minha carne desidratada. Começo a caminhar pela feira. Frutas esquisitas, odores idem. Caminho devagar, o corpo ainda se recupera. Levanto os olhos do copo de suco e a vejo. Estava numa barraca de peixes, comprava alguns. Tinha a pele morena, cabelos negros compridos, bunda grande, seios menores. Havia várias índias como ela por ali, mas tinha algo mais, nao sabia o quê. Caminhei na sua direção, quase hipnotizado. Imagino que o coração continuou a bater, que meus olhos piscaram, que o pulmão seguia inspirando e respirando, mas isto é mera suposição. Parecia uma daquelas cenas de filme em que tudo fica em silêncio e a lente vai se aproximando da personagem. Não via muito mais além dela. Pareciam figuras distorcidas, imagens fora de foco. Perto dela tropecei numa criança. Despertei. Fiquei sem graça, pedi desculpas à crianca e à mãe. Ela parecia achar graça também. Obviamente percebeu que eu não era daquelas bandas. Um gringo bobo, quiçá. Aproveitei para vê-la mais de perto. Usava óculos escuros grandes e nenhuma maquiagem. Lábios, olhos bochechas, queixo, nariz, testa, orelhas, cabelo. Escrutinava tudo. Ela meio acanhada, sorriu. Consegui dizer oi. Ela replicou o monossílabo. Pensei em dizer algo, mas nada conseguia ser elaborado. "Deu pau no sistema", diria algum primo. Ocorreu-me de perguntar-lhe sobre os peixes que comprava. Pergunta tola, mas eu não conseguia produzir nada melhor do que aquilo naquela hora. Estava anestesiado ainda, pela sua beleza, integral, charmosa, cheirosa, discreta. Seus lábios se moviam, parecia responder minha pergunta. Procurei escutar. Do pouco que meus tímpanos fizeram chegar ao cérebro, o resto se perdeu por aí, entendi que tinha ou trabalhava num restaurante. Aproveitei a deixa e disse que estava com muita fome, e inquiri sobre o restaurante. Ela explicou que era um pouco longe dali, no bairro fulano de tal. O nome me fez lembrar de algo. Abro o caderninho de anotações e confirmo que havia uma igreja naquele bairro também por visitar, segundo o guia. Invento uma estória que estou indo para aquelas bandas visitar a tal igreja. Ela finge acreditar. Ofereço para ajudar a carregar as sacolas. Relutante ela aceita. Passamos em mais algumas barracas onde ela compra mais alguns itens. No caminho me contou que era filha única, e junto com a mãe mantinham um pequeno restaurante. Não era muita coisa mas dava para pagar as contas. Estudava pela manhã, sonhava ser bióloga. Tinha esta curiosidade pela vida que brota, cresce e um dia se vai. Mexia nos cabelos enquanto falava. Eu ficava absorto, às vezes escutava o que ela dizia, outras vezes não fazia questão. O corpo respondia confuso, cheirava seus olhares, olhava sua boca, ouvia seu perfume... Anunciou que estavam encerradas as compras e que deveria buscar um lotação para chegar em casa. Fez menção de despedir-se. Acordei assustado do meu transe. Disse que não e me ofereci para irmos de taxi. Argumentei que estava indo mesmo para aquelas bandas, e que as sacolas estavam muito pesadas. Ela tentou dizer que não, mas eu já havia alcançado um taxi, e aguardei-a com a porta aberta. Com um riso tímido ela aceita e entra no taxi. Indica ao motorista o endereço. Chegamos, pago e abro a porta. O lugar é simples. Algumas mesas de metal, daquelas oferecidas pelas companhias de cerveja, panos quadricalados cobrindo-lhes a nudez, saleiros e paliteiros de plástico sobre os panos. A mãe, uma índia que ainda trazia os traços da beleza de outrora, aguardava sentada nos degraus. Ela nos apresenta. A mãe me olha com um certo ar de desconfiança. Pergunta de onde sou, e franze o cenho quando replico. Fico sem entender porque. Ela percebe e vem ao meu resgate. Na mão traz o cardápio, nos lábios um sorriso. Menu simples como o resto do lugar. Sem olhar peço um daqueles peixes frescos que acabamos de comprar, à moda da casa, o que quer que isto seja. A mãe responde entre dentes que vai levar muito tempo para preparar. Replico que não tenho pressa. E que afinal estava ali para visitar a tal da igreja. A mãe vira as costas e parte rumo à cozinha. Ela sorri incomodada pela rispidez da mãe. Não ligo. Fico apenas olhando para seus lábios, brilhantes, carnudos, morenos como o resto da sua pele. Ela me indica o caminho da igreja e diz que quando voltar o peixe estará pronto. Nos despedimos. Ela sorri mais uma vez antes de virar-se e ir ter com a mãe na cozinha. Sigo na direção que ela me indicou. Fico vagando pelas esquinas olhando para dentro, revendo o filme que gravara na mente, com suas imagens. Encontro um boteco. Me aboleto no balcão simples e peço uma cerveja gelada. O dono me traz junto com um copo, que talvez já tenha sido de geléia ou requeijão. Um pedacinho do rótulo ainda não havia sido lavado. Bebo rápido a primeira, peço uma segunda, depois uma terceira. Faço as contas e penso que já é hora de voltar ao restaurante. Peço a conta ao dono. Jogo as moedas sobre o balcão. Antes de sair, e para certificar-me, pergunto ao dono onde é o restaurante. Ele indica com o dedo e complementa com duas frases curtas. Era próximo. Sigo naquela direção. Meus pensamentos ainda monotemáticos, ela apenas. Viro a última esquina e a vejo em pé à porta. Ela acena e sorri. Retribuo. Não em resposta a ela, mas por mim mesmo. Estava feliz, infantilmente feliz. Chego. O lugar está vazio, é cedo para as jantas e tarde para os almoços, mas não me tocava com nada disto. Não sabia bem ao certo se ainda tinha fome, mas também de nada valeria a observação. Ela vem da cozinha trazendo os pratos. Caminha de uma forma elegante. Percebo que trocou de roupas e tomou banho. Ainda trazia os cabelos úmidos. Tinha uma camiseta curta, ombros nus, e uma saia azul leve, com alguns bordados e algumas miçangas, um pouco cigana. Coloca os pratos sobre a mesa e me deseja bom apetite. Sorri. Olho para seu rosto e me dou conta, não tinha mais os óculos escuros, no lugar das pupilas e da íris apareciam duas safiras azuis, transparentes, brilhantes. Fico de boca aberta olhando para eles. Penso em dizer algo mas as palavras me faltam novamente. Ela sorri e sai. Fico olhando para lugar nenhum, perdido, ébrio. Algum tempo depois ela retorna. E rindo pergunta se eu vou comer alguma coisa. Os pratos estavam sobre a mesa, como ela os havia deixado. Tento me recompor, me sirvo e começo a comer. Processo mecânico sem nenhuma importância. A alma se saciava dos seus olhares. Olho novamente para ela e com frases incompletas falo alguma coisa dos seus olhos. Meio sem jeito ela explica que foi herança do pai. E ao fim da frase nota que foi a única herança do pai. Sinto uma gota de amargura escorrer daquele comentário. Perguntei sobre os pais. Parece incomodada com a pergunta. Olha para o chão. Conta que nunca conheceu o pai. Deste tinha apenas as histórias da mãe e uma foto onde apareciam abraçados. Explicou-me que os pais se conheceram um dia na rua. Ele, um gringo de passagem por ali, engenheiro de um projeto próximo. Namoraram alguns dias, até que ele partiu. Pegou o barco, como os outros homens daquele lugar, e desceu o rio. Nunca mais voltou. A mãe, que não sabia da vida que já carregava no ventre, despediu-se dele no porto. Foi a última vez que se viram. Foi assim que ela me contou. Sentia a tristeza ali nos seus olhos azuis. Pensei em dizer algo. Finalmente conversamos sobre a escola e os planos. Ela também sonhava em um dia descer o rio, conhecer o mundo do outro lado. Falava de descer o rio e ir ter no mar, imenso ouviu dizer, e se perder no mar. E um dia voltar para contar tudo à mãe. Consegui terminar de comer enquanto conversávamos. Bebia dos seus olhos. Percebia que também olhava para mim, um olhar distinto. Tento perguntar o que fazer por ali, a que horas ela estaria disponível, onde poderíamos caminhar. Ela disfarça. Eu insisto. Ela responde que não há muito o que fazer. Bairro humilde, sem grandes atrações. Respondo que não tenho pressa. Ela finalmente dá a entender que poderíamos ir até a sorveteria, que fechava depois do seu restaurante. Disse que sim. Combinamos para mais tarde. Relutante, pago e parto. Vejo seus olhares doces, e o ar de reprovação da mãe, antes de virar a esquina. Aceno. Volto ao bar de antes. Continuo a beber. Uma mesa de sinuca velha. Pego um dos tacos e coloco meu nome na lista de próximas. Jogo algumas partidas, venço a maioria, sigo bebendo. A certa altura o dono do bar indica que são horas de fechar. Pergunto as horas: merda! Esqueci. Pago e corro até a sorveteria. Encontrei-a quase partindo, olhos tristes. Chego até ela esbaforido, peço desculpas. Ela sorri e aceita. Entramos, pedimos os sorvetes e fomos caminhar na beira do cais. É noite de lua cheia. Sua pele morena reluz. Seus olhos azuis concorrem com o brilho da lua. Brilham mais que as estrelas, sem dúvida. Continuamos a caminhada. Preencho o silêncio com minhas histórias, minhas viagens, as coisas que existem do lado de lá do rio. Ela escuta, acha graça. Gosto do seu gosto. Faço menção de pegar-lhe a mão. Ela não faz menção de correr. Procuro um canto no muro do cais. Me viro para ela e sem dizer palavra beijo-lhe. Ela retribui. Sinto o gosto doce dos lábios, e o perfume da sua pele se entranha pelas minhas narinas. Abraço-a mais forte. Ela também. Ficamos ali não sei quanto tempo, um tempo curto, curto demais para minha existência. Não falamos mais palavras, deixamos que as mãos e o resto de nossos corpos o façam. Ela me pega a mão e diz com os olhos que devo segui-la. Caminho tortuoso, becos escuros, aperto mais a sua mão. Chegamos à sua casa. É tarde e todos parecem dormir na vizinhança. Ela entra devagar e indica com a mão que a espere. Volta rápido com um cobertor largo. Não entendo, a noite é quente. Me leva para detrás da casa. Sobe por uma escada pequena, enferrujada. Vou atrás. Alcançamos a laje. Ela abre o cobertor, deita e me convida com os braços abertos. Vou ao seu encontro. Aperto-a mais. Ilusão de fundir nossos corpos, talvez. Carinhos e beijos. Buscamos silêncio, interrompidos por alguns gemidos, exclamações de nossas almas. Aos poucos retiramos as vestes que nos cobrem. Ficamos nus. Os carinhos seguem. A lua, lá de cima, nos olha. Deveria estar sorrindo também. Beijos, carinhos, gemidos... me ajeito para dar meu corpo a ela... fazemos amor. Acordo no dia seguinte. Ela ao meu lado. Os raios do sol, poucos, lilazes, vermelhos, refletem sobre o rio, que enxergo dali de cima. A lua foi esconder-se. Beijo-a mais uma vez. Ela sorri sem abrir os olhos. Me abraça. Fazemos amor novamente. Penso que o Sol também deve estar sorrindo. Catamos nossas roupas. Descemos a escada. Ela me acompanha até a esquina. Emito as primeiras palavras em muitas horas. Explico que vou ao hotel, pegar minhas coisas e embarco mais tarde. Ela abaixa a cabeça em silêncio. Abraço-a. Sinto a camisa molhada, das suas lágrimas. Os olhos azuis se cobrem de uma cor vermelha. Beijo-a longamente, uma última vez. Parto. Saco um taxi até o hotel. No caminho a confusão de pensamentos me assola. Sigo mecânico, a rota mais fácil que não passa pelo coração. Peço ao taxi que me espere. Subo, pego minhas coisas, pago o hotel e retorno ao taxi. Indico-lhe o caminho do porto. Pago o taxi. Procuro meu barco. Dezenas de pessoas passando com suas malas e mercadorias. Alguns chegando, outros partindo. A mesma viagem. Vou ao barco. Ordeno aos neurônios que silenciem o coração. Doce ilusão. Meus pensamentos não se descolam dela. Era como uma imagem semi-transparente, tudo o que meus olhos viam, daquele cais, daqueles barcos, tinha um anteparo, uma imagem, seu sorriso, seu olhar. Subo no barco. Procuro meu lugar. Largo as coisas lá. O barco anuncia a partida. Vou ao convés. Busco o ponto mais alto. Olho para a cidade. Olho para o cais. Vejo-a ali, acenando para mim. Algumas lágrimas molham o rosto de ambos. Não tenho certeza se é alguma artimanha da minha mente, ou se de fato ela está ali aos pés do cais. Aceno assim mesmo. Com o vento soprando na sua direção envio beijos. O barco solta as suas amarras e começa a se distanciar do ancoradouro. Busco a popa. Grito para ela:

“Eu volto, um dia...”