segunda-feira, abril 30, 2007

Um ex muita coisa


Quando criança eu era comunista. Não rias, é verdade. Sonhava com um mundo melhor, com um governo mais justo e honesto. Coisa de menino asmático que ficava em casa lendo os russos Gorky (A mãe), Chekov, o inglês George Orwell (A revolução dos bichos), Graciliano Ramos (Vidas Secas) e outros autores que falavam da tal “opressão da classe trabalhadora por burgueses e/ou monarcas”. A trilha sonora que me acompanhava nesta época, ali pelos meus dez ou doze anos de idade, era composta primordialmente de Chico Buarque (várias músicas), e Geraldo Vandré (apenas uma, repetida incessantemente). Influência benigna de uma Tia querida que se gabava de ter todo os LPs do Chico.

Ainda vivíamos numa ditadura. Eu percebia algumas coisas, muitas não entendia. Uns anos mais tarde, comunista mais aguerrido, acabei me metendo com movimentos estudantis. Organizava passeatas, protestos, mas ainda não pintávamos nossas faces. Esta bela inovação veio bem depois, pela mão de outros estudantes secundaristas.

Iniciava o movimento na minha escola, no começo da Asa Sul, e puxava o cordão até o final da Asa, parando em cada uma das muitas escolas secundárias no percurso. Depois voltávamos às centenas pela W3 rumo ao Congresso. Corri da polícia, seus gases e cães algumas vezes. Era mais rápido e tinha mais sorte naquela época, nunca me alcançaram.

Em Brasília havia panelaços, buzinaços e outros protestos pseudo-organizados. Não havia “torpedos ou instant messaging” naquela época, não sei como fazíamos.

Fogo-fátuo: geração espontânea dos gases emanados de um corpo em decomposição. O sistema já apresentava sinais claros de findar-se. Houve a emenda das Diretas-Já, que perdemos, e a última eleição do colégio eleitoral, que vencemos.

Havia um pulha, desconectado do tempo, Newton Cruz, comandante do CMP (Comando Militar do Planalto). Num dos buzinaços ali na esplanada desceu do seu gabinete no Ministério do Exército, pegou um dos soldados de prontidão na entrada, e caminhou até a avenida. Parou um dos muitos carros que buzinavam ali. Ordenou ao pobre soldado que apontasse a metralhadora que trazia para o rosto do pobre motorista. Armada a cena, troça do motorista: toca esta merda da buzina agora, toca se você for homem! Ato de covardia insana. O motorista tocou a buzina assim mesmo.

Vencemos a ditadura, e perdemos o Tancredo. No dia da sua internação, véspera da posse, dormia na casa da Tia, pronto para as celebrações do dia seguinte. De madrugada o primo me acorda anunciando que o Tancredo tinha sido internado. Mandei que ele parasse de inventar histórias e me deixasse dormir. Ele insistiu com a história maluca. Eventualmente acordei e fui até à sala. Assistíamos a TV incrédulos. Ainda incrédulos fomos até a entrada do Hospital de Base. Confirmamos a internação. Ninguém acreditava naquilo. Morreu meses depois.

Muita coisa se passou desde então. Já tinha abandonado o comunismo há tempos, mas o PT cuidou de enterrar o sonho.