Brooklyn Bridge
by Daniel Norman
“(...)Precisei de roupa nova
Mas sem prova de salário
Combinamos eu pagava,
Você fez o crediário
Nosso caso foi pra cova
E a roupa pro armário”
SPC, by Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho
Faz tempo. Morava na Big Apple, época de vacas magras, ou magérrimas, como diria um companheiro daquela época. Vendia o almoço para comprar a janta, algumas vezes por mês. Fazia um bico de garçom numa trattoria. A tesouraria da faculdade era como os bancos de então, não se importava com a origem do dinheiro.
Peguei o turno do almoço no fim de semana. Era quase castigo. Pouco movimento e poucas gorjetas. Além de alguns turistas sentaram-se à mesa duas mulheres, pouca semelhança física e alguma diferença de idade. A mais jovem me atraiu logo na chegada. Magra, alta, elegante, seios médios, cabelo castanho-vermelho, sorriso lindo. Talvez fosse modelo, pensei. O verão convidava a usar roupas mais leves e mais curtas. Ela era consonante. A outra também atraente, mas de uma outra forma, mais elegante, mais sóbria, seios e decotes, também maiores.
Com o pouco movimento fiquei por ali conversando fiado, na esperança que pudesse apurar algo, além da gorjeta. Apesar dos calculados esforços dirigidos à mais jovem, percebi que surtiam efeitos com a mais velha. “Não tens tu vai tu mesmo”, diria algum primo. Trocamos telefones. Eventualmente me deixaram saber que eram mãe e filha. Surpresa.
Liguei uns dias depois. Combinamos de sair. Fomos a algum canto. Bebemos algumas coisas. Trocamos algumas conversas. Dormiu no meu apartamento.
O rolo progrediu. Víamo-nos com mais assiduidade. Passei a gostar dela. Dividíamos confidências e afagos. Ela me contou do casamento, gravidez na adolescência, casamento precoce, outra filha, durou poucos anos.
Eventualmente me convidou para conhecer sua casa. Morava num apartamento grande, em TriBeCa. À época, divorciada, duas filhas, dois quartos. Comecei a dormir lá de vez em quando. Algum tempo depois consegui um estágio numa corretora de valores ali perto, no World Financial Center, ao lado das Torres Gêmeas. Conveniente localização, comecei a dormir lá com mais regularidade, já tinha até escova de dentes guardada.
Vários uniformes: gravata borboleta no restaurante, jeans velho na universidade e terno no estágio. Orçamento de estudante, tinha um terno apenas. Juntei uns trocados, aproveitei uma liquidação no centro, e com sua ajuda comprei um terno italiano, de linho, bege, chique e de bom preço. Guardava o terno em sua casa, era mais conveniente.
O relacionamento já contava com alguns meses de sobrevida. Um domingo ensolarado saímos para passear. Atravessamos a Brooklyn Bridge a pé, um dos meus passeios preferidos. Alcançamos o Brooklyn Heigths e o Promenade. Caminhávamos de mãos dadas. O sol ia se pondo, enxergávamos os dois rios, Manhattan, as torres, a estátua e umas crianças brincando. Ela se vira para mim com um sorriso nos lábios e pergunta:
- Você quer casar comigo?
Gostei da brincadeira e respondi em tom de piada:
- Claro, mas primeiro você tem que pedir a mão à minha mãe.
Ela também achou graça e riu. Continuamos a caminhada e a troca de banalidades. Minutos mais tardes ela repete a pergunta e eu repito a resposta. Seguimos rindo. O sol já se pondo e ela repete pela terceira vez, com um tom mais solene:
- Então, você aceita ou não aceita casar comigo?
- Você está falando sério?, perguntei incrédulo.
- Nunca falei tão sério na minha vida, respondeu.
Gaguejei qualquer coisa... depois fiquei mudo... eventualmente falei que estava surpreso e que precisava refletir antes de responder. Ponderei que gostava muito dela, mas nos conhecíamos a pouco tempo. Ela não titubeou:
- Se não der certo a gente separa depois.
Fiquei mais confuso. Caminhamos mais e acabei indo para casa, sozinho. Cheguei em casa ainda confuso. Não conseguia dormir direito. Tentei ordenar os pensamentos. Era uma crise. Resolvi convocar o conselho, os quatro irmãos-amigos que moravam ali. Tínhamos o hábito de nos reunirmos pelo menos uma vez por mês para cozinhar e contar mentiras. Ficou marcado para o Domingo seguinte a próxima reunião. Fiquei encarregado da cozinha e eles do meu destino: casar ou não casar, eis a questão.
Por ordem acadêmica, o conselho era composto de um mestrando em administração de empresas, um mestrando em psicologia, um graduando em engenharia eletrônica e de sistemas, um doutorando em economia e um doutorando em neurociências. Time da pesada. A origem em comum, Brasília, com a pequena exceção de um quase goiano que morava noutra cidade. Mas o acolhemos assim mesmo.
Aos poucos foram chegando para o almoço, enquanto eu concluía os preparativos. Eventualmente, todos presentes, abri a sessão. Expus como pude meu dilema: o saco escrotal andava bem vazio, e eu gostava dela, embora não a amasse, e se nos casássemos poderia ter o Green Card, o valor da faculdadade seria reduzido à metade, seria mais fácil arranjar emprego e mais um monte de vantagens práticas. Com a vida dura que levava tinham ainda mais peso estas considerações.
Debates viris se seguiram. Posições, citações, previsões, quase xingamentos, ofensas e perdões de ambas as partes. Eu assistia a tudo aquilo como juiz de mim mesmo, e poucas intervenções em campo.
Já era noite. Algumas garrafas vazias pelo chão. Os ímpetos já mais embriagados, e tranquilos. Era chegada a hora do veredito final. Pedi a contagem dos votos. Merda: 2X2. Pensei em trocar alguns membros do conselho, mas não dava. As amizades ali reunidas davam mais de cem anos, coisa difícil de se achar. Tinha que decidir eu mesmo, e sabia também que embora tivesse votos de apenas dois, teria o apoio dos quatro.
Não revelei meu voto. Precisava de uma noite de sono pelo menos. Começaram as despedidas dos conselheiros. O psicólogo, o primeiro a sair, arremata o jogo, na prorrogação: “se você resolver virar cafetão mesmo e casar só por causa do dinheiro, pelo menos capricha no uísque da festa de casamento.”
Certeiro como de costume. Fui dormir solteiro.
Comentei a decisão à pretendente, e tentei negociar um prazo para nos conhecermos mais e tal e coisa. Umas semanas depois acabamos o namoro num bate-boca de orelhão. Coisa esquisita. Meus alfarrábios que ficavam na sua casa nunca foram resgatados.
Até hoje, infelizmente, ainda tenho que ouvir este samba aí de cima da boca do quase goiano...
PS: a Maurício Dantas, o bem-assombrado,
Mais três fiéis mosqueteiros.