segunda-feira, abril 30, 2007

Um ex muita coisa


Quando criança eu era comunista. Não rias, é verdade. Sonhava com um mundo melhor, com um governo mais justo e honesto. Coisa de menino asmático que ficava em casa lendo os russos Gorky (A mãe), Chekov, o inglês George Orwell (A revolução dos bichos), Graciliano Ramos (Vidas Secas) e outros autores que falavam da tal “opressão da classe trabalhadora por burgueses e/ou monarcas”. A trilha sonora que me acompanhava nesta época, ali pelos meus dez ou doze anos de idade, era composta primordialmente de Chico Buarque (várias músicas), e Geraldo Vandré (apenas uma, repetida incessantemente). Influência benigna de uma Tia querida que se gabava de ter todo os LPs do Chico.

Ainda vivíamos numa ditadura. Eu percebia algumas coisas, muitas não entendia. Uns anos mais tarde, comunista mais aguerrido, acabei me metendo com movimentos estudantis. Organizava passeatas, protestos, mas ainda não pintávamos nossas faces. Esta bela inovação veio bem depois, pela mão de outros estudantes secundaristas.

Iniciava o movimento na minha escola, no começo da Asa Sul, e puxava o cordão até o final da Asa, parando em cada uma das muitas escolas secundárias no percurso. Depois voltávamos às centenas pela W3 rumo ao Congresso. Corri da polícia, seus gases e cães algumas vezes. Era mais rápido e tinha mais sorte naquela época, nunca me alcançaram.

Em Brasília havia panelaços, buzinaços e outros protestos pseudo-organizados. Não havia “torpedos ou instant messaging” naquela época, não sei como fazíamos.

Fogo-fátuo: geração espontânea dos gases emanados de um corpo em decomposição. O sistema já apresentava sinais claros de findar-se. Houve a emenda das Diretas-Já, que perdemos, e a última eleição do colégio eleitoral, que vencemos.

Havia um pulha, desconectado do tempo, Newton Cruz, comandante do CMP (Comando Militar do Planalto). Num dos buzinaços ali na esplanada desceu do seu gabinete no Ministério do Exército, pegou um dos soldados de prontidão na entrada, e caminhou até a avenida. Parou um dos muitos carros que buzinavam ali. Ordenou ao pobre soldado que apontasse a metralhadora que trazia para o rosto do pobre motorista. Armada a cena, troça do motorista: toca esta merda da buzina agora, toca se você for homem! Ato de covardia insana. O motorista tocou a buzina assim mesmo.

Vencemos a ditadura, e perdemos o Tancredo. No dia da sua internação, véspera da posse, dormia na casa da Tia, pronto para as celebrações do dia seguinte. De madrugada o primo me acorda anunciando que o Tancredo tinha sido internado. Mandei que ele parasse de inventar histórias e me deixasse dormir. Ele insistiu com a história maluca. Eventualmente acordei e fui até à sala. Assistíamos a TV incrédulos. Ainda incrédulos fomos até a entrada do Hospital de Base. Confirmamos a internação. Ninguém acreditava naquilo. Morreu meses depois.

Muita coisa se passou desde então. Já tinha abandonado o comunismo há tempos, mas o PT cuidou de enterrar o sonho.


domingo, abril 29, 2007

Chapa-quente




Carbon Emissions 2000

By WorldMapper

"... the world need[s] to differentiate between the survival emissions of the poor and luxury emissions of [the] rich." Sunita Narain, 2002


Chapa-quente


Troféu joinha!





Glauco, Folha, 15/4/2007


A sombra, minha sombra



Tai Chi in Hong Kong

by Lonely Planet

Pelo canto do olho vejo-a, bem perto de mim, seguindo meus passos, um a um, sem tropeçar. Não sei dançar direito, mas com ela nunca ocorreu-me de errar os passos ou pisar-lhe os pés. Já me acompanha há vários anos, quase desde quando eu vim ao mundo, cogito. Não lembro de nada desta época. Minha mãe diz que foi cesariana, e me mostrou o hospital. A súbita claridade deve ter me assustado. Mas não lembro. Contudo, imagino que já estivesse ali ao meu lado. Quando era criança brincava de fugir dela, tentava ser mais rápido, perder-me de si. Depois de várias tentativas infrutíferas consegui um dia descobrir-lhe a fraqueza. Corria rápido pela casa e me escondia num canto escuro. Ela sumia. Com o passar dos anos fui me acostumando com sua presença. Era uma amiga solidária, escutava minhas estórias, meus devaneios, em silêncio. Às vezes parecia concordar ou discordar, balançando a cabeça. Era monocromática, negra, com tons de cinza, mais claros ou mais escuros. Como eu, preferia o sol à noite. Era mais presente nestas ocasiões. Na busca de mim mesmo pensei em usá-la para tentar me compreender. Deveria ser mais fácil, uma cor, duas dimensões apenas. Pensei e penso em descrever-lhe por uma equação matemática, algum algoritmo. Talvez ajude a minha busca. E se não conseguir descobrir as respostas restará a algum que a queira estudar, na prateleira empoeirada de alguma biblioteca. Quando me for irá comigo, fiel, numa caixa escura. Dirá adeus antes da tampa se fechar.


sexta-feira, abril 27, 2007

Auto-carros e paragens


As veias levam o sangue, vida e oxigênio ali contidos.

Este vai e volta.

Os auto-carros passam de paragem em paragem, num ciclo.

Alguns passageiros descem, outros sobem.

Aguardo pelo auto-carro que a levou, sentado naquela paragem.

Desejo e afeto ali contidos...



quinta-feira, abril 26, 2007

Te dire


"Te dire cosas
que nunca dije

Te abrire una puerta
Que nunca te he abierto

Te susurrare al oido
Como nunca nadie

Para decirte
Que te quiero.

Y amarte
Y sonarte
Y beberte,
Como un rio
En mis manos

Y con mi cuerpo
Desnuda.

Te amo
Y te espero.

Y te dire cosas de otro tiempo
Y otros lugares.

Como la nina que fue
Y el hombre que eres.

Como la busqueda incansable
Que adorna mis huesos.

Y te dire cosas...
Sin decirle al viento."


by Martinez

Uma índia, um olhar, um encontro, uma despedida




Cambodia


"Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente
Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido cada dia mais curto" (...)

Minha História
by Chico Buarque


.

O telefone toca. Aguardo um instante antes de decidir se estou sonhando ou acordado. Prefiriria a primeira opção, mas o segundo toque não deixa dúvidas. Estico o braço na direção do som. Tateio e consigo encontrá-lo. Alô. Sim. É, mais um dia. Obrigado, valeu tchau. Ah, que horas são? Merda. Quer dizer, obrigado. Tchau. Repouso-o sobre o gancho. Resolvo abrir um olho, um pedacinho apenas. Último dia naquela cidade. No dia seguinte deveria pegar o barco e descer o rio, tempo de ir-me daquelas bandas. Com preguiça, e com ressaca, consigo chegar até o banheiro. Minutos mais tarde é possível emergir com uma aparência quase humana. Me visto, pego a carteira e o bloco de notas. Pego um taxi com destino à feira local. Meu guia de viagem indicava um bom local para visitar e recomendava comer em alguma das barraquinhas da redondeza. Chego ainda meio zonzo, mas consigo encontrar uma lanchonete onde o taxi me abandonou. Peço um suco de frutas da região, uma daquelas que não se parecem com nada que você já experimentou antes. Pego e pago. Saio. O calor e a umidade castigam minha carne desidratada. Começo a caminhar pela feira. Frutas esquisitas, odores idem. Caminho devagar, o corpo ainda se recupera. Levanto os olhos do copo de suco e a vejo. Estava numa barraca de peixes, comprava alguns. Tinha a pele morena, cabelos negros compridos, bunda grande, seios menores. Havia várias índias como ela por ali, mas tinha algo mais, nao sabia o quê. Caminhei na sua direção, quase hipnotizado. Imagino que o coração continuou a bater, que meus olhos piscaram, que o pulmão seguia inspirando e respirando, mas isto é mera suposição. Parecia uma daquelas cenas de filme em que tudo fica em silêncio e a lente vai se aproximando da personagem. Não via muito mais além dela. Pareciam figuras distorcidas, imagens fora de foco. Perto dela tropecei numa criança. Despertei. Fiquei sem graça, pedi desculpas à crianca e à mãe. Ela parecia achar graça também. Obviamente percebeu que eu não era daquelas bandas. Um gringo bobo, quiçá. Aproveitei para vê-la mais de perto. Usava óculos escuros grandes e nenhuma maquiagem. Lábios, olhos bochechas, queixo, nariz, testa, orelhas, cabelo. Escrutinava tudo. Ela meio acanhada, sorriu. Consegui dizer oi. Ela replicou o monossílabo. Pensei em dizer algo, mas nada conseguia ser elaborado. "Deu pau no sistema", diria algum primo. Ocorreu-me de perguntar-lhe sobre os peixes que comprava. Pergunta tola, mas eu não conseguia produzir nada melhor do que aquilo naquela hora. Estava anestesiado ainda, pela sua beleza, integral, charmosa, cheirosa, discreta. Seus lábios se moviam, parecia responder minha pergunta. Procurei escutar. Do pouco que meus tímpanos fizeram chegar ao cérebro, o resto se perdeu por aí, entendi que tinha ou trabalhava num restaurante. Aproveitei a deixa e disse que estava com muita fome, e inquiri sobre o restaurante. Ela explicou que era um pouco longe dali, no bairro fulano de tal. O nome me fez lembrar de algo. Abro o caderninho de anotações e confirmo que havia uma igreja naquele bairro também por visitar, segundo o guia. Invento uma estória que estou indo para aquelas bandas visitar a tal igreja. Ela finge acreditar. Ofereço para ajudar a carregar as sacolas. Relutante ela aceita. Passamos em mais algumas barracas onde ela compra mais alguns itens. No caminho me contou que era filha única, e junto com a mãe mantinham um pequeno restaurante. Não era muita coisa mas dava para pagar as contas. Estudava pela manhã, sonhava ser bióloga. Tinha esta curiosidade pela vida que brota, cresce e um dia se vai. Mexia nos cabelos enquanto falava. Eu ficava absorto, às vezes escutava o que ela dizia, outras vezes não fazia questão. O corpo respondia confuso, cheirava seus olhares, olhava sua boca, ouvia seu perfume... Anunciou que estavam encerradas as compras e que deveria buscar um lotação para chegar em casa. Fez menção de despedir-se. Acordei assustado do meu transe. Disse que não e me ofereci para irmos de taxi. Argumentei que estava indo mesmo para aquelas bandas, e que as sacolas estavam muito pesadas. Ela tentou dizer que não, mas eu já havia alcançado um taxi, e aguardei-a com a porta aberta. Com um riso tímido ela aceita e entra no taxi. Indica ao motorista o endereço. Chegamos, pago e abro a porta. O lugar é simples. Algumas mesas de metal, daquelas oferecidas pelas companhias de cerveja, panos quadricalados cobrindo-lhes a nudez, saleiros e paliteiros de plástico sobre os panos. A mãe, uma índia que ainda trazia os traços da beleza de outrora, aguardava sentada nos degraus. Ela nos apresenta. A mãe me olha com um certo ar de desconfiança. Pergunta de onde sou, e franze o cenho quando replico. Fico sem entender porque. Ela percebe e vem ao meu resgate. Na mão traz o cardápio, nos lábios um sorriso. Menu simples como o resto do lugar. Sem olhar peço um daqueles peixes frescos que acabamos de comprar, à moda da casa, o que quer que isto seja. A mãe responde entre dentes que vai levar muito tempo para preparar. Replico que não tenho pressa. E que afinal estava ali para visitar a tal da igreja. A mãe vira as costas e parte rumo à cozinha. Ela sorri incomodada pela rispidez da mãe. Não ligo. Fico apenas olhando para seus lábios, brilhantes, carnudos, morenos como o resto da sua pele. Ela me indica o caminho da igreja e diz que quando voltar o peixe estará pronto. Nos despedimos. Ela sorri mais uma vez antes de virar-se e ir ter com a mãe na cozinha. Sigo na direção que ela me indicou. Fico vagando pelas esquinas olhando para dentro, revendo o filme que gravara na mente, com suas imagens. Encontro um boteco. Me aboleto no balcão simples e peço uma cerveja gelada. O dono me traz junto com um copo, que talvez já tenha sido de geléia ou requeijão. Um pedacinho do rótulo ainda não havia sido lavado. Bebo rápido a primeira, peço uma segunda, depois uma terceira. Faço as contas e penso que já é hora de voltar ao restaurante. Peço a conta ao dono. Jogo as moedas sobre o balcão. Antes de sair, e para certificar-me, pergunto ao dono onde é o restaurante. Ele indica com o dedo e complementa com duas frases curtas. Era próximo. Sigo naquela direção. Meus pensamentos ainda monotemáticos, ela apenas. Viro a última esquina e a vejo em pé à porta. Ela acena e sorri. Retribuo. Não em resposta a ela, mas por mim mesmo. Estava feliz, infantilmente feliz. Chego. O lugar está vazio, é cedo para as jantas e tarde para os almoços, mas não me tocava com nada disto. Não sabia bem ao certo se ainda tinha fome, mas também de nada valeria a observação. Ela vem da cozinha trazendo os pratos. Caminha de uma forma elegante. Percebo que trocou de roupas e tomou banho. Ainda trazia os cabelos úmidos. Tinha uma camiseta curta, ombros nus, e uma saia azul leve, com alguns bordados e algumas miçangas, um pouco cigana. Coloca os pratos sobre a mesa e me deseja bom apetite. Sorri. Olho para seu rosto e me dou conta, não tinha mais os óculos escuros, no lugar das pupilas e da íris apareciam duas safiras azuis, transparentes, brilhantes. Fico de boca aberta olhando para eles. Penso em dizer algo mas as palavras me faltam novamente. Ela sorri e sai. Fico olhando para lugar nenhum, perdido, ébrio. Algum tempo depois ela retorna. E rindo pergunta se eu vou comer alguma coisa. Os pratos estavam sobre a mesa, como ela os havia deixado. Tento me recompor, me sirvo e começo a comer. Processo mecânico sem nenhuma importância. A alma se saciava dos seus olhares. Olho novamente para ela e com frases incompletas falo alguma coisa dos seus olhos. Meio sem jeito ela explica que foi herança do pai. E ao fim da frase nota que foi a única herança do pai. Sinto uma gota de amargura escorrer daquele comentário. Perguntei sobre os pais. Parece incomodada com a pergunta. Olha para o chão. Conta que nunca conheceu o pai. Deste tinha apenas as histórias da mãe e uma foto onde apareciam abraçados. Explicou-me que os pais se conheceram um dia na rua. Ele, um gringo de passagem por ali, engenheiro de um projeto próximo. Namoraram alguns dias, até que ele partiu. Pegou o barco, como os outros homens daquele lugar, e desceu o rio. Nunca mais voltou. A mãe, que não sabia da vida que já carregava no ventre, despediu-se dele no porto. Foi a última vez que se viram. Foi assim que ela me contou. Sentia a tristeza ali nos seus olhos azuis. Pensei em dizer algo. Finalmente conversamos sobre a escola e os planos. Ela também sonhava em um dia descer o rio, conhecer o mundo do outro lado. Falava de descer o rio e ir ter no mar, imenso ouviu dizer, e se perder no mar. E um dia voltar para contar tudo à mãe. Consegui terminar de comer enquanto conversávamos. Bebia dos seus olhos. Percebia que também olhava para mim, um olhar distinto. Tento perguntar o que fazer por ali, a que horas ela estaria disponível, onde poderíamos caminhar. Ela disfarça. Eu insisto. Ela responde que não há muito o que fazer. Bairro humilde, sem grandes atrações. Respondo que não tenho pressa. Ela finalmente dá a entender que poderíamos ir até a sorveteria, que fechava depois do seu restaurante. Disse que sim. Combinamos para mais tarde. Relutante, pago e parto. Vejo seus olhares doces, e o ar de reprovação da mãe, antes de virar a esquina. Aceno. Volto ao bar de antes. Continuo a beber. Uma mesa de sinuca velha. Pego um dos tacos e coloco meu nome na lista de próximas. Jogo algumas partidas, venço a maioria, sigo bebendo. A certa altura o dono do bar indica que são horas de fechar. Pergunto as horas: merda! Esqueci. Pago e corro até a sorveteria. Encontrei-a quase partindo, olhos tristes. Chego até ela esbaforido, peço desculpas. Ela sorri e aceita. Entramos, pedimos os sorvetes e fomos caminhar na beira do cais. É noite de lua cheia. Sua pele morena reluz. Seus olhos azuis concorrem com o brilho da lua. Brilham mais que as estrelas, sem dúvida. Continuamos a caminhada. Preencho o silêncio com minhas histórias, minhas viagens, as coisas que existem do lado de lá do rio. Ela escuta, acha graça. Gosto do seu gosto. Faço menção de pegar-lhe a mão. Ela não faz menção de correr. Procuro um canto no muro do cais. Me viro para ela e sem dizer palavra beijo-lhe. Ela retribui. Sinto o gosto doce dos lábios, e o perfume da sua pele se entranha pelas minhas narinas. Abraço-a mais forte. Ela também. Ficamos ali não sei quanto tempo, um tempo curto, curto demais para minha existência. Não falamos mais palavras, deixamos que as mãos e o resto de nossos corpos o façam. Ela me pega a mão e diz com os olhos que devo segui-la. Caminho tortuoso, becos escuros, aperto mais a sua mão. Chegamos à sua casa. É tarde e todos parecem dormir na vizinhança. Ela entra devagar e indica com a mão que a espere. Volta rápido com um cobertor largo. Não entendo, a noite é quente. Me leva para detrás da casa. Sobe por uma escada pequena, enferrujada. Vou atrás. Alcançamos a laje. Ela abre o cobertor, deita e me convida com os braços abertos. Vou ao seu encontro. Aperto-a mais. Ilusão de fundir nossos corpos, talvez. Carinhos e beijos. Buscamos silêncio, interrompidos por alguns gemidos, exclamações de nossas almas. Aos poucos retiramos as vestes que nos cobrem. Ficamos nus. Os carinhos seguem. A lua, lá de cima, nos olha. Deveria estar sorrindo também. Beijos, carinhos, gemidos... me ajeito para dar meu corpo a ela... fazemos amor. Acordo no dia seguinte. Ela ao meu lado. Os raios do sol, poucos, lilazes, vermelhos, refletem sobre o rio, que enxergo dali de cima. A lua foi esconder-se. Beijo-a mais uma vez. Ela sorri sem abrir os olhos. Me abraça. Fazemos amor novamente. Penso que o Sol também deve estar sorrindo. Catamos nossas roupas. Descemos a escada. Ela me acompanha até a esquina. Emito as primeiras palavras em muitas horas. Explico que vou ao hotel, pegar minhas coisas e embarco mais tarde. Ela abaixa a cabeça em silêncio. Abraço-a. Sinto a camisa molhada, das suas lágrimas. Os olhos azuis se cobrem de uma cor vermelha. Beijo-a longamente, uma última vez. Parto. Saco um taxi até o hotel. No caminho a confusão de pensamentos me assola. Sigo mecânico, a rota mais fácil que não passa pelo coração. Peço ao taxi que me espere. Subo, pego minhas coisas, pago o hotel e retorno ao taxi. Indico-lhe o caminho do porto. Pago o taxi. Procuro meu barco. Dezenas de pessoas passando com suas malas e mercadorias. Alguns chegando, outros partindo. A mesma viagem. Vou ao barco. Ordeno aos neurônios que silenciem o coração. Doce ilusão. Meus pensamentos não se descolam dela. Era como uma imagem semi-transparente, tudo o que meus olhos viam, daquele cais, daqueles barcos, tinha um anteparo, uma imagem, seu sorriso, seu olhar. Subo no barco. Procuro meu lugar. Largo as coisas lá. O barco anuncia a partida. Vou ao convés. Busco o ponto mais alto. Olho para a cidade. Olho para o cais. Vejo-a ali, acenando para mim. Algumas lágrimas molham o rosto de ambos. Não tenho certeza se é alguma artimanha da minha mente, ou se de fato ela está ali aos pés do cais. Aceno assim mesmo. Com o vento soprando na sua direção envio beijos. O barco solta as suas amarras e começa a se distanciar do ancoradouro. Busco a popa. Grito para ela:

“Eu volto, um dia...”

Angkor....:) Esplendoroso! +++ fotos












quarta-feira, abril 25, 2007

Bad connection





By Fabiola Morais






I tried to contact her, send emails, forwarded links, wrote posts,... tried to reach her eyes, looked for her ears, tried to reach her heart, attempted to touch her soul... bad connection... my life is full of bad connections... maybe is the technology... will revert to drums... and smoke signals... will send letters, handwritten... will disguise myself as another myself... will search in my soul for one whom she has not met yet... who knows... maybe yes, maybe no... same same, but different...:( ... the heart is exquisite but worth pursuing... who knows, one day....:)

O ano em que não casei



Brooklyn Bridge
by Daniel Norman




“(...)Precisei de roupa nova
Mas sem prova de salário
Combinamos eu pagava,

Você fez o crediário
Nosso caso foi pra cova
E a roupa pro armário”


SPC, by Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho





Faz tempo. Morava na Big Apple, época de vacas magras, ou magérrimas, como diria um companheiro daquela época. Vendia o almoço para comprar a janta, algumas vezes por mês. Fazia um bico de garçom numa trattoria. A tesouraria da faculdade era como os bancos de então, não se importava com a origem do dinheiro.


Peguei o turno do almoço no fim de semana. Era quase castigo. Pouco movimento e poucas gorjetas. Além de alguns turistas sentaram-se à mesa duas mulheres, pouca semelhança física e alguma diferença de idade. A mais jovem me atraiu logo na chegada. Magra, alta, elegante, seios médios, cabelo castanho-vermelho, sorriso lindo. Talvez fosse modelo, pensei. O verão convidava a usar roupas mais leves e mais curtas. Ela era consonante. A outra também atraente, mas de uma outra forma, mais elegante, mais sóbria, seios e decotes, também maiores.


Com o pouco movimento fiquei por ali conversando fiado, na esperança que pudesse apurar algo, além da gorjeta. Apesar dos calculados esforços dirigidos à mais jovem, percebi que surtiam efeitos com a mais velha. “Não tens tu vai tu mesmo”, diria algum primo. Trocamos telefones. Eventualmente me deixaram saber que eram mãe e filha. Surpresa.


Liguei uns dias depois. Combinamos de sair. Fomos a algum canto. Bebemos algumas coisas. Trocamos algumas conversas. Dormiu no meu apartamento.


O rolo progrediu. Víamo-nos com mais assiduidade. Passei a gostar dela. Dividíamos confidências e afagos. Ela me contou do casamento, gravidez na adolescência, casamento precoce, outra filha, durou poucos anos.


Eventualmente me convidou para conhecer sua casa. Morava num apartamento grande, em TriBeCa. À época, divorciada, duas filhas, dois quartos. Comecei a dormir lá de vez em quando. Algum tempo depois consegui um estágio numa corretora de valores ali perto, no World Financial Center, ao lado das Torres Gêmeas. Conveniente localização, comecei a dormir lá com mais regularidade, já tinha até escova de dentes guardada.


Vários uniformes: gravata borboleta no restaurante, jeans velho na universidade e terno no estágio. Orçamento de estudante, tinha um terno apenas. Juntei uns trocados, aproveitei uma liquidação no centro, e com sua ajuda comprei um terno italiano, de linho, bege, chique e de bom preço. Guardava o terno em sua casa, era mais conveniente.


O relacionamento já contava com alguns meses de sobrevida. Um domingo ensolarado saímos para passear. Atravessamos a Brooklyn Bridge a pé, um dos meus passeios preferidos. Alcançamos o Brooklyn Heigths e o Promenade. Caminhávamos de mãos dadas. O sol ia se pondo, enxergávamos os dois rios, Manhattan, as torres, a estátua e umas crianças brincando. Ela se vira para mim com um sorriso nos lábios e pergunta:


- Você quer casar comigo?


Gostei da brincadeira e respondi em tom de piada:


- Claro, mas primeiro você tem que pedir a mão à minha mãe.


Ela também achou graça e riu. Continuamos a caminhada e a troca de banalidades. Minutos mais tardes ela repete a pergunta e eu repito a resposta. Seguimos rindo. O sol já se pondo e ela repete pela terceira vez, com um tom mais solene:


- Então, você aceita ou não aceita casar comigo?


- Você está falando sério?, perguntei incrédulo.


- Nunca falei tão sério na minha vida, respondeu.


Gaguejei qualquer coisa... depois fiquei mudo... eventualmente falei que estava surpreso e que precisava refletir antes de responder. Ponderei que gostava muito dela, mas nos conhecíamos a pouco tempo. Ela não titubeou:


- Se não der certo a gente separa depois.


Fiquei mais confuso. Caminhamos mais e acabei indo para casa, sozinho. Cheguei em casa ainda confuso. Não conseguia dormir direito. Tentei ordenar os pensamentos. Era uma crise. Resolvi convocar o conselho, os quatro irmãos-amigos que moravam ali. Tínhamos o hábito de nos reunirmos pelo menos uma vez por mês para cozinhar e contar mentiras. Ficou marcado para o Domingo seguinte a próxima reunião. Fiquei encarregado da cozinha e eles do meu destino: casar ou não casar, eis a questão.


Por ordem acadêmica, o conselho era composto de um mestrando em administração de empresas, um mestrando em psicologia, um graduando em engenharia eletrônica e de sistemas, um doutorando em economia e um doutorando em neurociências. Time da pesada. A origem em comum, Brasília, com a pequena exceção de um quase goiano que morava noutra cidade. Mas o acolhemos assim mesmo.


Aos poucos foram chegando para o almoço, enquanto eu concluía os preparativos. Eventualmente, todos presentes, abri a sessão. Expus como pude meu dilema: o saco escrotal andava bem vazio, e eu gostava dela, embora não a amasse, e se nos casássemos poderia ter o Green Card, o valor da faculdadade seria reduzido à metade, seria mais fácil arranjar emprego e mais um monte de vantagens práticas. Com a vida dura que levava tinham ainda mais peso estas considerações.


Debates viris se seguiram. Posições, citações, previsões, quase xingamentos, ofensas e perdões de ambas as partes. Eu assistia a tudo aquilo como juiz de mim mesmo, e poucas intervenções em campo.


Já era noite. Algumas garrafas vazias pelo chão. Os ímpetos já mais embriagados, e tranquilos. Era chegada a hora do veredito final. Pedi a contagem dos votos. Merda: 2X2. Pensei em trocar alguns membros do conselho, mas não dava. As amizades ali reunidas davam mais de cem anos, coisa difícil de se achar. Tinha que decidir eu mesmo, e sabia também que embora tivesse votos de apenas dois, teria o apoio dos quatro.


Não revelei meu voto. Precisava de uma noite de sono pelo menos. Começaram as despedidas dos conselheiros. O psicólogo, o primeiro a sair, arremata o jogo, na prorrogação: “se você resolver virar cafetão mesmo e casar só por causa do dinheiro, pelo menos capricha no uísque da festa de casamento.”


Certeiro como de costume. Fui dormir solteiro.


Comentei a decisão à pretendente, e tentei negociar um prazo para nos conhecermos mais e tal e coisa. Umas semanas depois acabamos o namoro num bate-boca de orelhão. Coisa esquisita. Meus alfarrábios que ficavam na sua casa nunca foram resgatados.


Até hoje, infelizmente, ainda tenho que ouvir este samba aí de cima da boca do quase goiano...


PS: a Maurício Dantas, o bem-assombrado,
Mais três fiéis mosqueteiros.

terça-feira, abril 24, 2007

IINN – Neurociências


Imagine que você fosse um neurocientista renomado, um dos mais conceituados no mundo. E que você tivesse um prédio de pesquisa, com vários laboratórios, algumas dúzias de estudantes de pós-doutorado, doutorado e mestrado trabalhando para você. Imagine que você fosse professor titular de uma das dez maiores universidades americanas, com vários artigos publicados nas mais renomadas revistas científicas. E que um dia a insanidade lhe acometesse e você resolvesse fundar um centro de pesquisa internacional numa pequena cidade do nordeste. E que esta loucura fosse contagiosa e você arranjasse mais dois mosqueteiros.

Alguns te chamariam de visionário, e muitos te chamariam de louco, certo?!?

Pois que vivam os loucos!

Miguel Nicollelis, Claudio Mello e Sidarta Ribeiro, os três mosqueteiros.

O primeiro é palmeirense, e professor da Duke University. Os outros dois, de melhor estirpe, flamenguistas, vêm de Brasília, da UnB. O último, pós-doutor em neurobiologia, é diretor de pesquisas do centro, professor de capoeira e escritor nas horas vagas...

PS: eles são loucos mesmo,
querem abrir outros centros de pesquisa no nordeste...

Pela última vez


Tranquei a porta. Empurrei-a na cama. Arranquei suas roupas. Com uma mão segurava o travesseiro. Este escondia seus gritos. Com a outra abria suas pernas. Estas tremiam. Ela dizia que não. Talvez. Mordia seu pescoço. Lambia sua orelha. Beliscava seus seios. Bebia seu suor. Um só corpo. Urramos uníssonos.

Pela última vez.



Pensamentear


E não se iludam, a realidade carnal será sempre melhor do que a fantasia virtual.




Mondo Cane


O Tozóide passou correndo pelo Esperma, mas ainda ouviu aquele suspirar:

- Como seria doce se hoje eu encontrasse minha cara-metade e juntos déssemos início a uma nova vida.

O Tozóide, mais pragmático e mais apressado pensou:

- Se ele soubesse da cambada de tarados que estão vindo aí atrás ele não ficava de firula.





PS:"nós sofre mas nóis goza",
diria o Zé Simão





Pensamentear


Qualquer coincidência é mera semelhança.

PS: ou isto...

Negritude




By Bruce Davidson,
Alabama 1963

O blues é negro.
O jazz é negro.
O samba é negro.
A capoeira é negra.

A ópera é branca, e xoxa.

Os tambores são negros.
O candomblé é negro.
A Bahia é negra.
Deus é negra.

Seus deuses e santos são brancos,
Mas não são os nossos.

Zumbi era negro.
Miles Davis era negro.
Gil é negro.
Mandela é negro.

Hermeto Pascoal é albino, mas é negro.

A paz é branca, mas é passageira.
A dor é negra, e é permanente.





Rota de fuga


Começamos a namorar na escola. Ambos com nossas espinhas e ilusões de adolescente. Alguns dias depois do primeiro beijo ela faz o ultimato:


- Meus pais querem conhecer você.

Já o sabia inevitável, mas tinha que acontecer logo ali na primeira semana?, pensei.

Combinamos para uns dias depois, tinha que me preparar.

- Ok, na sexta, antes de irmos para o cinema passo na tua casa. Visita rápida, por favor. Supliquei.

Cheguei lá, suando um pouco. Apertei a campainha, mão trêmula. A mãe abriu a porta. Entrei com passos tímidos.

- Ela está no quarto e já vem. Você quer tomar algo?
- Água gelada por favor.
- Um minutinho, fique à vontade.
- Onde é o banheiro? Preciso lavar as mãos.
- Se for só para lavar as mãos pode usar o lavabo ali no corredor.

Na verdade, o nervosismo estava causando alguns efeitos colaterais indesejados, dor-de-barriga, aguda. Obviamente não expus os reais motivos para a busca do banheiro e toquei para o lavabo.

Fecho a porta e me deparo com a amarga realidade, sobre o vaso um bilhete: interditado. A dor-de-barriga não deu ouvidos. Comecei a suar frio. Tinha que improvisar. Olhei para a pia de louça branca. A pia olhou para mim... me ajeitei como deu. Um fedor desgraçado, e alguns ruídos tomaram conta do banheiro. Suspirei aliviado. A pia quase cheia. Que merda!, pensei. Abri a torneira. Algumas gotas apenas... a mãe bate à porta e avisa:

- O pedreiro está consertando o banheiro, talvez não tenha água na pia...

Filha-da-puta! Agora que ela me avisa... o pânico toma conta de mim... com as gotas que caíam da torneira e um tufo de papel tento me limpar. A mãe, e a filha, batem à porta.

- Tudo bem?!?

Claro que não, pergunta imbecil. Mas não respondi. A raiva só não era maior do que o constrangimento. Me ajeito na pia, tento me limpar novamente. As mãos tremem e me sujo ainda mais. A situação está ficando fora de controle. Elas batem novamente à porta.

- Você está bem? Quer ajuda?

Se quero ajuda? Claro, uma máquina de teletransporte. Só penso em fugir dali, sem ter que passar pela sala. Olho esparançoso para o basculante. Não cabe, não dá para fugir. Tento o vaso. Não percebo que está solto. Cai e quebra. A água do cano começa a jorrar. Tento futilmente tapar com a mão. Corro até a pia, ainda tento me limpar. Me desequilibro no chão molhado e a pia cai. Merda por todos os lados. Agora são dois canos jorrando. Elas batem mais forte à porta.

- Aconteceu alguma coisa? Você está bem?!?

O desespero aumenta. A água e a merda se misturam no chão. Começa a subir. Molho os pés. Piso em alguma coisa mole... aarrrgh!!! Tento subir a calça, mas o zíper trava na cueca. Era só o que me faltava. Vejo que começa a vasar por debaixo da porta o líquido marrom. Elas gritam do lado de fora.

- Abra a porta!

Desespero. Só penso em fugir dali. Abro e saio correndo nu, empunhando a calça, as mãos sujas de merda e os pés molhados. Um dilúvio me acompanha a caminho da saída.

- Eu sou maluco, eu sou maluco!!!... grito em rota de fuga.


Mudei de escola. Mudei de cidade. Nunca mais a vi. Uff!



PS: aos amigos...


segunda-feira, abril 23, 2007

Miles Davis - the genesis of a second God











Interviews with: Chick Corea, Herbie Hancock David Liebmann, Pete Cosey etc. They all played with Miles when he met Jimmi Hendrix, Santana, others, and became electric.


Plus the Master himself, Miles Davis.

"I played one way so long that I just had to change my way. In order to give it to you. So you will like it."

"It was no longer jazz, and they were asking jazz critics to evaluate Miles."

"Play through it. There are only two vibes. The vibe on the stage and the vibe out there. Play it."





Impressões

Olé!

My type of bar. Great tapas. Real Sangria. Belas chicas. True Gazpacho. Live music. And the owner, drunker than me.




Apenas um

É terno meu caminhar,
Mas eterno seria cantar.
Não sou menestrel,
E não creio em bruxas ou céu.



A vida que me consome,
Um dia findará.
Carregarei apenas um nome,
E ao pó tudo retornará.



Não será morte lamentada,
Tampouco festejada.
Não haverá muita gente,
Apenas um, que errou de parente.

Nova República


Ilustre leitor deste bufão verborrágico virtual, convoco-o para uma nova Cruzada Psicodélica. E como várias outras, pela manutenção do statu quo. Devemos fundar o Movimento Pela Preservação do Presente, que um dia ali na frente será passado. Lançaremos nossa Cruzada e faremos nossa voz chegar a terras distantes. Seremos vitoriosos e fundaremos a Nova República (ou talvez a Velha Monarquia).

Nossa lista parcial de reinvindicações:

- Sede do novo governo: uma casa em Santa Tereza com varanda grande, vista para o Corcovado e Pão-de-Açúcar. (a grande revanche do comunista Niemeyer foi ter construído o Palácio da Alvorada).

- Rede de Transporte: o bondinho de Santa Tereza, que sacoleja devagar há décadas. (viagem interplanetária à velocidade da luz deve dar um enjôo desgraçado).

- Rede de Comunicações: radinhos de pilha, com chiado, para escutar jogo de futebol. (home theaters holográficos de última geração não entram no Maracanã).

- Prato oficial: feijoada do Mineiro, torresmo de entrada, e uma garrafa de Salinas. (dieta sintética balanceada deve ter gosto de cabo de guarda-chuva).

­­- Sistema de ensino: Neruda e Fernando Pessoa lidos em edições antigas, compradas em sebo. (esta história de livros implantados durante o sono deve ser coisa de maluco).

- O novo hino: um samba do Cartola, escolhido em audiência pública na sede da Mangueira. (quem contratou Joaquim Osório Duque Estrada?!?).

- Musa da Nova República: uma morena cheirosa, de bunda grande, e que saiba cozinhar e sambar. (as mulheres-robôs, modelo Angelina Jolie deveriam ter chulé, já de fábrica).

Avante com a nossa Cruzada!

Morte aos infiéis!


PS:Inclusive já tenho um Marquês em mente
para o posto de Embaixador na ONU.

domingo, abril 22, 2007

Inspirações



Carl Jung, “pai da psicanálise moderna”


O homem e seus símbolos, o último livro que ele escreveu.



Sabe máquina de caça-níqueis?


Quando você acerta no jackpot caem várias fichas.

Voltas-tu?





Poeira.

Sótão.

Baú.

Agenda velha.

Capa puída.

Página amarelada.

Um envelope.

Um postal.

Uma mancha.

Uma gota do teu perfume?

Uma gota do teu suor?

Fecho a agenda.

Fecho os olhos.

Abro os braços.


Voltas-tu?


Monólogos intercalados


Se conheceram na festa da vizinha. Ele chegando, ela saindo. Trocaram telefones, ele ligou dois dias depois. Ela meio-fina, ele meio-grosso. O diálogo, monólogos intercalados:

- Estou descobrindo a cozinha oriental, seus aromas picantes. E adoro sushi da Califórnia.
- Também gosto de japonês, mas nunca tem farinha nem ketchup.


- Li outro dia na manicure que na Itália eles não usam colher para comer espaguete, apenas o garfo.
- Por isso que eu corto o meu com faca, e meto ketchup.


- E eu sempre fui dengosa para comer. Quando criança mamãe brincava de trenzinho com a colher cheia de papinha.
- Meu velho nunca me forçou a comer. Um dia ele explicou à mesa: ou goela abaixo ou cu acima, esta porra vai parar no estômago.


- Adorei as cervejas belgas aromatizadas, aqueles suaves toques de frutas vermelhas.
- Não tinha nenhuma amargosa. Queria uma lapada de pau-de-nêgo.


- E meu pai me dava todos os animais que eu pedisse. Ganhei uma cracatoa no aniversário de 10 anos.
- Eu tinha um pato de borracha na banheira, furado de um lado.


- Na escola eu ganhava todas as gincanas. Um dia eu fui até para a Disney.
- Na oitava série tinha um concurso de caretas. Dois inscritos. Tirei o segundo lugar. Duas semanas no Piauí. O primeiro prêmio era apenas uma.


- Meu pai adora os cubanos.
- Prefiro os bahianos. Conhece manga-rosa?


- Já experimentou foie gras? Mamãe trouxe uma lata de Paris.
- Tem uma buchada de bode ali na feira que é um arraso. E tem farinha até de Nazaré.




Livre-tradução, busco


Tomara

que não termine

a tinta

que tilinta

no tanque...


sábado, abril 21, 2007

Aldeia Global

Vinham de todas as partes. Não fiz um censo naquele antro de luxúria, mas havia diversas colombianas, filipinas, vietnamitas, tailandesas, chinesas, ganenses, russas etc. As filipinas e colombianas predominavam. Dividiam o espaço de certa maneira, colombianas, e seus seios fartos, à direita, filipinas, sem bunda, à esquerda.

Um sociólogo dos anos ’70 talvez citasse a opressão dos antigos colonizadores e a luta de classes para explicar a opção por aquela vida difícil e efêmera.

A realidade era mais fugaz:

“No money, no honey”, explicou-me Sofia, uma russa.

Saí entendendo tudo.

(...)

Acordei ao seu lado, ou deveria dizer, sob ela. Tinha a cabeça repousada no meu peito. Ela ajeitou o lençol sobre si. Me dei conta do frio. Ar-condicionado forte, lençóis úmidos de nós mesmos. Virei-me para desligar o ar. Estiquei o braço e alcancei o botão sem acordá-la. Mirei o espelho no teto, quarto de motel. Nos recebia com suas vantagens de logística e sua impessoalidade asséptica. Lamentei que nossos encontros, freqüentes, tivessem que se dar ali. Mas eu morava em prédio antigo, sem garagem, entrada única, porteiro omnipresente, e fofoqueiro. A óbvia diferença de idade certamente chamaria a atenção. Estaríamos expostos. Além do mais, seu rosto angelical, traços finos e sorriso inocente sugeriam uma idade ainda menor. Poderia ser minha filha, diriam, mas não era. Não os tinha. Órfã de antigos colegas de trabalho, acidente de ônibus. Excursão para a praia. Perdeu os freios na descida da serra. Nenhum sobrevivente. Alguns menos afortunados ainda agonizaram por vários dias em hospitais. Deveria estar naquele ônibus também. Noitada grande na véspera, dormi demais. Acordei com o telefonema de um amigo que soube que eu perdera aquele ônibus. Julgava-me morto até então. Após a morte foi criada pela avó. Esta displicentemente zelosa, e nos últimos tempos conivente passiva com nossos encontros. Havia muito perdera a vergonha daquele enlace. Escorreu depressa, ampulheta de alta vazão. Nunca compreendi quando e onde tudo começou. Mesmo se um dia fosse julgado por este crime de amor, mesmo que o juiz me intimasse a responder, ou que o promotor reiterasse a acusação, ou que arcanjos ou santos me inquirissem no final dos tempos, no juízo final, apocalíptico, cristão, nem lá poderia responder. Não sei dar conta, senhor merítissimo. Não posso precisar, senhor promotor. Não encontro resposta na alma, senhor arcanjo. Que me leves o Diabo, senhor santo! Não havia jeito, por mais que escrutinasse a mente. Procurei olhares fortuitos, sorrisos tímidos, toques inusitados, mas nada que pudesse dar data do início daquela paixão que me consumia a carne e o espírito. Desde a morte dos pais, embora pouco presente, me investi na figura de tio. Vez por outra ligava para a avó para ter notícias suas. Ajudava um pouco nas despesas. Levava-a aos cinemas, lanchonetes e zoológico, como compete aos tios. Vi a puberdade brotrar-lhe. Os primeiros sutiãs. O celular que se transfomou em extensão do corpo. A forma como começou a olhar os outros garotos da mesma idade. A primeira visita ao ginecologista. Certo dia, ao ver os olhares trocados com outro guri, senti ciúmes. Como uma revelação satânica me dei conta da mudança: tornara-se mulher, objeto de desejo. A partir deste dia comecei minhas penitências. Evitei contatos. Não respondia emails. Martirizava-me, penintenciava-me por aquele desejo proibido. Procurei preces, terapia, à toa. Nas terapias discutia fábulas. Rememorava que nos primeiros longas da Disney, as personagens Pateta, Mickey ou até o próprio Pluto, se deparavam entre diabos e anjos, sugerindo-lhes escolhas diferentes, ao pé-do-ouvido. Ao contrário dos coloquiais happy-endings de Hollywood, no meu caso, o Diabo venceu a peleja. Um dia reencontrei-a num bar. Festa de amigos seus. Parei para vê-la. Brevemente, pensei. Como um viciado terminal, a abstinência da sua presença me consumia. Como um alcóolatra em rehabilitação cometi o pecado terminal: uma dose apenas. Embriaguei-me dela. Poucos convidados, bar simples, patê de atum, bolo caseiro e cerveja gelada. Havia um violeiro. Acho que tocava bem. Era boa pinta e as moças disponíveis, solteiras ou não, clamavam por uma fração do seu pensamento. Ele, falsamente alheio, dedilhava um 7-cordas. Todas menos ela. Obstinadamente seguia não apenas seus passos mas também seus olhares. Na minha embriaguez buscava alcançar seus pensamentos. Devaneios. Dancei alguns sambas com ela. A formação de balé não acompanhava meu falso carioquês. Mas ainda assim trazia seu corpo junto ao meu. Passei a entender a expressão sublime amor. Fui ao banheiro. Na volta não a vi mais. Procurei ansioso. Sentia o ar faltar, e o coração bater mais depressa. Eventualmente ela emergiu de um canto escuro, um rapaz a acompanhava. Senti ciúmes. Cogitei em ir até ela e iniciar uma discussão. Futilidade. Prostei-me resignado. Ela se aproximou. Jeito maroto, olhar de falsa timidez. Dançamos mais. Bebia mais. Já não disfarçava a vontade de tê-la nos braços. De olhos fechados trazia-a junto a mim. Fantasiava a realidade de tê-la comigo. Despedidas. Carona oferecida. Carona aceita. Partimos. Caminhamos até o carro. Abri a porta para ela. Fitei-a sem dizer palavra. A lua cheia iluminava. Seus olhos brilhavam. Pensei em roubar-lhe o primeiro beijo ali mesmo. Ela parecia corresponder. Confuso, nada fiz. Uma música qualquer no rádio. Seguia a baixa velocidade. Fazia das minhas para que o ponteiro dos segundos seguisse mais arrastado. Segurava sua mão. A minha transpirava. Desliguei o rádio. Restou o barulho do vento apenas, e nosso silêncio. O turbilhão de pensamentos me assolava, a culpa, a vergonha, e o desejo. Chegamos à sua casa. Calada, ela me pegou pela mão e me fez entrar. A vó viajara na véspera. O anjo me guiava na casa escura. Fomos até seu quarto. Acendeu uma vela. Fechou a porta. Beijou-me. Senti as pernas tremerem. Beijava-me mais. Confuso, ébrio, excitado. Fez sinal para que levantasse os braços. Tirou minha camisa. Acariciava o peito, brincava com os mamilos. Agachada abriu o zíper da calça, me tocou novamente... Deitamos já nus na cama pequena. Era como sob medida para nossos corpos unidos. Não sei descrever o que se passou. Era como se uma revelação divina tivese sucedido. Num clarão vi sua face contraída, seu corpo suado em movimento, e um grito de prazer. Acordei no dia seguinte na mesma posição em que nos encontrávamos naquele motel. Nossos encontros se tornaram quase que diários. As horas e os minutos não faziam mais sentido. Meus momentos se definiam apenas pela sua presença ou pela sua ausência. Pensei em fugir para terras distantes, Passárgada talvez. Ajeitei sua cabeça no meu peito. Um sorriso escorria dos lábios. Não pensei mais sobre o futuro ou até onde poderíamos levar nosso amor proibido. Hoje estávamos ali. Bastava. Fechei os olhos.

Adormeci.


PS: “A chapeuzinho-vermelho
sempre quis ser comida
pelo lobo-mau.”

Maurício Dantas, o bem-assombrado.