Tirei o lenço do bolso num último gesto de compostura que o sol castigante me permitia. Limpei o suor e segui em frente. Empurrei a porta e aboletei-me no balcão. Sem cerimônia ordenei um vermouth local ao garçom. Como que mudo às minhas súplicas, seguiu resoluto. Não obstante, para minha grata surpresa, retornou em um par de minutos. Na sua mão firme um copo longo: gelo, duas fatias de limão, umas gotas do aguardente da região, e vermouth oriundo de um barril maior que eu, acostado à parede dos fundos, e um toque final de água com gás. Sorvi a metade antes de voltar a repousá-lo sobre o porta-copos. Limpei novamente o suor da testa e percebi que ela continuava a me olhar, impassiva.
Havia muito trocáramos as últimas palavras sensíveis. Matínhamo-nos apegados ao nível mínimo de banalidades necessárias. Procurava disfarçar, mas eu via a tristeza escancarada, ali, no fundo dos seus seus olhos.
Com a pouca hombridade que me restava fiz ver ao garçom que nos arranjasse uma mesa próxima à janela. Sentamo-nos logo em seguida. Chamei o garçom e ordenei o que nos trouxesse. Há muito, tal como velhos amantes, não mais dispensávamos horas a fio buscando decifrar o menu e nossos desejos. Unilateralmente ordenava ao garçom o saciamento de nossas fomes e sedes.
Como comumente ocorre nestas horas de profundo prazer, e dor, pouco falávamos. À parte de poucos distúrbios locais de paisanos, outros fregueses e garçons, propus-me a decifrá-la. Seus lindos olhos castanhos, cor-de-mel, obstinadamente evitavam os meus, tanto quanto sua boca evitava dizer algo que chamasse a atenção dos meus ouvidos.
Nossa troca de silêncios foi interrompida pelo garçom. Este também de poucas palavras. Seco o copo de vermouth ordenei-lhe uma jarra de sangria, sem consultar-lhe.
Ainda silenciosos mastigamos os pedaços de polvo, pleno de páprica e azeite extra-virgem. Vez por outra alternávamos com pedaços de batata com um toque de alecrim.
Minha companheira mantinha-se reclusa.
Como um bruxo já conhecedor daquele encanto buscava, com os olhos fechados, descobrir os ingredientes da comida e bebida. Assim como um apreciador de música clássica busca o prazer nos tons individuais de um cello e de um violino, buscava eu o mesmo, ter no palato cada um dos sabores que degustava.
Corri toda a vida. Porém, às vésperas da morte, buscava singularidades. Foram muitos banquetes com plebeus, reis, rainhas e suas respectivas corjas. Paulatinamente, mas com crescente certeza, passei a enojá-los. Convivi com eles, seus servos e oportunos admiradores, tanto quanto pude. Participei de suas orgias, favores e embriaguez. Não mais.
Hoje os recordo com paúra, de mim mesmo.
A mão trêmula que faz o copo cair me traz de volta ao presente. Ela prontamente acode e pede desculpas ao garçom. Este, impiedoso, varre sob meus pés. Sigo saboreando.
Embora pernóstico, diria que transladei da ingestão à degustação, e finalmente ao saboreio, havia pouco. A ingestão primal da fonte de energia foi substituída pelo prazer gastronômico. Este por sua vez completo com os outros sentidos. Recordava um livro de receitas antigo. Das páginas coloridas e seus pratos ostensivamente decorados, saquei a frase: também come-se com os olhos.
A repentina dor no abdômen retirou-me do paraíso. Busquei com sofreguidão os comprimidos no bolso do paletó. Com a dor aumentando as mãos tremiam mais. Ela me fitava assustada. Encontrei alguns. Meti-os apressadamente na boca. Um ou dois caíram. Tomei um gole grande da sangria e respirei fundo. Ela talvez tenha pensado em dizer algo contra as pílulas com o álcool. Fútil comentário para alguém que tem seus dias contados, e agonizantes, pela frente.
Retomei o garfo. Mastigava devagar os últimos pedaços. Saquei a derradeiro fatia de pão do cesto e limpei o azeite que restava no fundo prato.
Dispensei as sobremesas, que me olhavam sedutoras. Ordenei dois cafés, e o meu com um suspiro do aguardente.
Pagamos e buscamos a saída. O calor e o sol de julho castigavam. Em algum termômetro tenho certeza que vi mais de 40 graus marcados. Rumamos ao hotel, não distante dali. Chegamos ao quarto e fui buscar um banho refrescante. Saí enrolado na toalha. Ela entrou em seguida. Vesti a cueca e me escondi debaixo do lençol. Acordei com ela deitando-se ao meu lado. Usava uma destas camisetas longas, com um desenho sem importância. Tinha o cheiro do shampoo apenas, e algo mais que era só seu.
Ajeitei minha cabeça em seu peito. Por tantos anos era ela que repousava no meu peito, enquanto eu contava histórias que ela gostava de ouvir. Esta parecia ser nossa última confidência. Seus dedos acariciavam minha cabeça. Um sorriso doce me escorria dos lábios.
Algum tempo depois acordei, ainda em seu colo, com o toque do telefone. Já aguardando o que me esperava do outro lado da linha atendi. Respondi em pucas palavras que estaria pronto em 10 minutos, e que um dos serviçais subisse para ter com as malas. Pousei o fone no gancho.
Nossos olhos se fitaram mais uma vez. Ela ameaçava deixar uma lágrima cair. Beijei-lhe o rosto e abracei-a com força. Não sei quanto tempo ficamos assim. Eventualmente soltei-a. Fitei-lhe os olhos mais uma vez e me pus a vestir. Ela fez o mesmo enquanto ajeitava as últimas coisas nas malas. À batida da porta mandei que entrassem. Mostrei-lhes as malas e corri ao elevador.
O gerente, cúmplice de outras estadias, me aguardava no lobby. Não pude esconder o sorriso ao ver uma limousine conversível, Rolls-Royce, anos 60, me aguardando. Dois hóspedes que entravam num RR Phantom me olharam com inveja. Apertei-lhe a mão e com uma piscada de olho agradeci a gentileza. Sabíamos que não haveria outras estadias depois desta.
Embarcamos rumo ao aeroporto. Indiquei que baixasse a capota, apesar do calor ainda forte do final da tarde. Mirava o horizonte, seus prédios mouros, e o “castelo que cantava com sua água”, omnipresente sobre a montanha.
Logo chegamos ao nosso destino. Nossos cartões de embarque e o acesso à sala VIP já nos aguardavam. Indiquei as malas no bagageiro e gratifiquei regiamente a ambos. Caminhamos ao portão de embarque. Subindo pelo elevador voltei a sentir a dor, trucidante. Os dedos trêmulos buscavam novamente os sedativos. Encontrados alguns engoli-os mesmo sem ter o que beber. Uma vez na sala VIP me fiz valer de uma taça de champagne, de razoável qualidade. Servi outra taça para ela e fui ao seu encontro.
O seu vôo e o meu estavam programados para decolar em 30 e 35 minutos, respectivamente. Embora não conversássemos a respeito sabíamos que também não voltaríamos a nos ver. Tudo começou um ano antes. Uma indisposição. Uma visita ao médico da família. Exames. Diagnóstico. Choque. Cirurgia. Diagnóstico piorado. Medicamentos, tratamentos, preces etc, tudo em vão, o quadro piorava. A internação do mês anterior foi a pior. O médico, confidente antigo, finalmente contou-me o que já nos era claro, tinha algumas semanas mais de vida, e provavelmente apenas uma ou duas antes da próxima e derradeira internação.
Ela me aguardava no hospital. Visitava-me todos os dias. Muitas vezes trazia algo para que eu saboreasse, sem o conhecimento das enfermeiras é claro. Repeti-lhe o que o médico havia me dito. Sequei suas lágrimas e devagar expliquei o que desejava dela. Uma viagem, a nossa viagem final. Depois disto não nos veríamos mais. Eu retornaria ao hospital e ela ao ex-namorado. Ela não questionou nada.
Agora no aeroporto me detia apenas à admirá-la, escaneva cada milímetro de sua pele, decorava seu sorriso, seu olhar. Tinha-os iguais ao da mãe. Queria ter este retrato indelével de ambas.
O som do alto falante anunciava pela última vez a partida do seu vôo. Levantei com sua ajuda. Abracei-a com firmeza. Sentia suas lágrimas caindo sobre meu ombro. Afastei-a de mim. Toquei-lhe os lábios e indiquei que partisse. Com a bolsa na mão ela se virou e me beijou. Fiquei em pé, respirando seu ar, tocando o espaço que ela havia preenchido. Finalmente meu vôo também foi chamado. Fiz questão de ser o último a entrar no avião. Antes que a porta se fechasse lancei um olhar para o horizonte, um olhar de adeus.