quinta-feira, março 22, 2007

No paraíso não havia pequi

É possível sentir, cheirar, tocar, lamber, chupar, apertar, sorver, se lambuzar e se deleitar. Só não pode morder. Nunca. O perigo é grande. A dor, indizível. Em torno do pequi a virilidade tem limites. Os experientes avançam com desembaraço e precisão sobre a pequena saliência. Os novatos progridem às apalpadelas, cheios de dedos, assustadiços. É com cuidados infinitos que fazem uma pinça com o indicador e o polegar e seguram o globo carnoso. Os sôfregos – ah, os sôfregos… – eles não se agüentam. Com as mãos trêmulas, seguram o fruto delicioso e dão-lhe uma dentada. Começa então o sofrimento, atroz. Parte da emoção de comer pequi está no perigo de encontrar os minúsculos espinhos que separam a polpa amarelo-ouro da branca semente.

De novembro a fevereiro, período da frutificação, a fragrância do pequi toma conta do cerrado, a paisagem que toca doze estados e o Distrito Federal. Em Brasília, há pequizeiros nas superquadras, entrequadras e nas vizinhanças do Palácio da Alvorada. A partir de setembro, a sua flor anuncia o fruto. De tronco tortuoso e galhos com fissuras e cristas sinuosas (como definem os botânicos), as árvores atingem até 10 metros de altura. Em fevereiro, estão carregadas do fruto esverdeado e arredondado como um abacate pequeno, só que mais rechonchudinho. Quando eles caem de maduros, abre-se a temporada de caça, programada para terminar em meados de março – é quando o pequi passa a viver no congelador dos aficionados e dos comerciantes.

Entre o meio da primavera e o quase final do verão, o comércio sazonal do pequi, que o Ministério da Agricultura não se interessa em quantificar, se instala na beira de estradas, nos mercados populares e nas bacias de alumínio das feiras livres. Os caroços são acomodados em latas, que, teoricamente, equivalem a um litro. Custam, em média, quatro reais.

“Não suporto, não posso nem ver de perto.” “Amo, não vivo sem.” “Não posso nem sentir o cheiro.” “É maravilhoso, não há nada igual.” O pequi divide opiniões. É difícil chegar a uma definição precisa do cheiro da fruta. Para alguns, aroma inebriante e dominador. Para outros, insuportável fedor. “Ele tem cheiro de cerrado”, especula a chef goiana Chris Isaac.

Em sua aparição mais freqüente, o pequi é Caryocar brasiliense ou brasiliensis. Do grego caryon (núcleo ou noz), mais kara (cabeça). O adjetivo brasiliense vem por conta de ser brasileiro. O botânico Auguste de Saint-Hilaire encontrou a árvore e a fruta em sua Viagem à Província de Goiás, em 1819. E registrou: “Dou aqui o nome vulgar dessa pequena árvore como foi registrado, de acordo com minhas notas, na Flora Brasiliae meridionalis, mas talvez o mais certo seria escrever piqui, de conformidade com a pronúncia. Trata-se evidentemente da mesma árvore que Casal registrou com o nome de piquiá”. Os índios, que conheciam o fruto há muito mais tempo, nomearam o perigo. Em tupi, o pequi é pele (py) e espinho (qui).

Por dentro, o pequi é uma espécie de ouriço-do-mar elevado à enésima potência. “O espinho penetra fundo e a dor junto com ele”, garante Rita Medeiros, proprietária da sorveteria Sorbê, em Brasília, que vende sorvete de pequi processado com leite, em uso “doce”, em vez do aproveitamento “salgado”, mais comum. O físico Oscar Ferreira de Lima, professor da Universidade Estadual de Campinas, ficou intrigado com os espinhos, que agem como farpas, e chegou à seguinte conclusão: “Olhei o pequi no microscópio várias vezes e, se não posso fazer uma afirmação estatística categórica, é possível dizer que há dezenas de espinhos em cada milímetro quadrado de pequi”. Dedicado proprietário de dois pequizeiros, o professor Ferreira de Lima já foi obrigado a pinçar espinhos da língua de um amigo. Durante uma hora de trabalho delicadíssimo, o especialista em supercondutores se improvisou em enfermeiro.

Em maio de 2001, o então senador Saturnino Braga caiu de boca num prato com pequi e viu seu idílico passeio à cidade histórica de Pirenópolis se transformar em fato nacional. Sua foto, com os lábios deformados pelo fruto, foi para as primeiras páginas dos jornais e, dali, para cartuns e caricaturas. A fama negativa do vegetal cresceu. “O goiano aproveita o desconhecimento sobre o pequi para se divertir. A expectativa é ver a reação à mordida”, conta Wilson Hargreaves, culto ex-livreiro, conhecedor de hábitos urbanos e rurais. Seria um tipo de hospitalidade perversa. Felipe Ribeiro, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa, e especialista em cerrado, concorda que comunidades tradicionais podem usar o conhecimento em causa própria – como um saber que os dominantes não dominam.

Há quem atribua poderes afrodisíacos ao fruto. “É comum ouvir dizer que, nove meses depois da safra, nascem uns bebês fortes pra danar”, relata a bióloga Semíramis de Almeida, pesquisadora aposentada da Embrapa Cerrados. O que há de correto é que o gorduroso e oleaginoso pequi, rico em vitamina A, é um alimento possante.

http://www.revistapiaui.com.br/2007/mar/culinaria.htm