sexta-feira, maio 04, 2007

Nada


Guernica, by Picasso


Dizia-se dele: era tão triste e tão preguiçoso que gastou a vida inteira para matar-se. Não buscou outro que o fizesse. Entreteu-se a si mesmo com o sórdido trabalho. O fazia com pouca continuidade, sem nenhuma paixão, esforço ou desejo. Fazia-o porque havia de ser feito, diria a si mesmo se ousasse ter perguntado. Mas nunca o fez, e não mais o fará. Não era de arroubos, ousadias ou destemperamentos. Tinha sobretudo uma preguiça de sê-lo, ou de qualquer outra coisa ser. Preferia o nada. Nada ser, nenhum título a ostentar, nem amores passados ou presentes. Do ócio, a manutenção, mínima necessária. Abandonara o nome também, há muito, era assim mais fácil não explicar de onde vinha, muito menos para onde iria. Assim levou, assim foi levando. Buscava nada aprender, para nada ter que lembrar. Pouco esforço fez para manter as imagens, gostos, cheiros do passado. Tudo era passado. O passado era etéreo, mercurial, foi-se logo também. O passado não é e nunca lhe foi nada. Nada de devaneios sobre origem, tramas, ideais, ilusões. Nada. Na derradeira hora ainda pensou em buscar um copo d’água gelada, mas de que serviria matar a sede? Desperdício do tempo que escorria, últimas gotas. Ou seriam os últimos grãos de areia na ampulheta? Foi, no dia em que a tristeza alegrou-se, vencera a preguiça. O sol raiou, o sol se pôs, também não deu pela sua falta ao partir. Quem daria? Amigos nunca os teve, parentes não passavam de um espaço vazio no escaninho da sua mente. Espaços vazios, espaços vazios, espaços vazios... a única presença que ocupava era de seu corpo magro, maltrapilho, cuja silhueta e cheiro fétido abriam espaço onde passava. Talvez dissessem algo dele, ou para ele, mas nunca os escutava. Eram do lado de lá, do lado de fora de si, sem importância, sem ter que ser. Se parasse teria que ouvir, replicar, ouvir novamente. Não, não seria o caso. Para quê afinal? Não era nunca nada. Nada, nunca. Não tinha com bichos ou crianças. Não tinha que ter com ninguém. Infanticídio teria sido mais curto, mas não disse a nenhum que o fizesse. Não podia ter com outros. Tinha um muro, onde se recostava, onde descansava sua preguiça de nada ser. E deste não fazia questão de sair. Levava-o dentro de si. Talvez tenha sido seu maior esforço em vida, seu muro imaginário. Dos poucos pensamentos que engendrou, houve uma pequena curiosidade, passageira, do corpo que carregava, e das chagas e pústulas que se seguiram. Como ousava funcionar, dar de si, sem sua autorização, sem seu consentimento? E não havia sequer uma alavanca fácil de empurrar que desligasse o motor... seguia como o bondinho com seus fios e cabos ligados a algo que o fazia andar, sem nenhum motor à vista que cuspisse fumaça. Nunca soube como, nunca quis saber destas coisas. Coisas sem importância para alguém como ele. Sabia não ser nada especial, nem especial em nada. Se livros tivesse lido diria ou pensaria em palavras, mas estas demoravam em chegar, em ler, em experimentar. Manuseva imagens, sons e cheiros, simples como o resto de si. Nada tinha na memória, que lembrar, nada tinha na alma, que sentir. Não sentia frio, tristeza, fome, solidão, nada. Se pensasse talvez imaginasse que fosse a mesma arbitrariedade que fazia seu corpo funcionar, sem o seu consentimento. E tirar-lhe a vida, desligar a máquina, baixar a alavanca que não sabia existir, demandaria esforço, e de nada valeria. Nada fez para viver, nada fez para morrer. Foi, um dia.