quarta-feira, janeiro 24, 2007

Navegar é preciso, viver não é preciso


“Para toda a humanidade e no decorrer de todos os tempos, o mar tem sido o grande símbolo do inconsciente. As ilhas do outro lado do mar, os reinos exóticos e as terras distantes, sempre representaram, o Grande Desconhecido. A atração que sentimos por estes lugares tão cheios de mistérios, de magia, de tapetes voadores e gênios, tem um significado interior profundo. É a nostalgia das profundezas misteriosas e inexploradas de nossa psique, das potencialidades ocultas dentro de nossa alma – aquilo que jamais conhecemos, jamais vivemos ou ousamos.”

Robert Johnsohn, psicólogo jungiano

Conheci Bryan neste ano-novo no sul da Tailândia. Convidou-nos para drinks a bordo de seu barco. Éramos cinco no total. Fiquei incumbido dos Mojitos com hortelã fresca e rum Havana Club, ao som de MPB de ótima qualidade. CD comprado na fronteira com o Vietnam, me explicou. Devia ter mais ou menos a minha idade. Irlandês de nascimento, cidadão dos mares por escolha. Contou-me que mora em seu pequeno veleiro há sete anos, singrando solitário pelos mares do sul. É seu segundo veleiro, o primeiro era ainda menor, me disse. Tinha estórias de pescador para encher um livro, mas recusava-se a escrevê-las. Tinha um bom coração, parecia-me feliz com a vida que escolhera. Contou-me das duas vezes que decidiu desistir, em ambas as vezes depois de dias de tempestade em alto mar quando duvidava que sobreviveria. Porém, uma vez em terra firme, algo o impulsionava de volta, não era ali o seu lugar. Onde seria então? Ainda a descobrir.

Um de seus amigos ali era Paul, inglês de nascimento, samaritano ambulante por escolha. Alguns anos atrás Paul teve um sério acidente de moto. Passou tempos em coma, e por algum descuido recusou-se a aceitar o aperto de mão da morte. Um dia acordou, sem memória. Nunca voltou a recuperá-la integralmente. Aprendeu sobre seu passado, quem um dia foi, quem eram seus amigos, o que havia feito em sua outra vida etc, como lia um livro, seu livro. Embora redescobrisse todas estas coisas eram ainda distantes de si, eram coisas de seu personagem, um outro myself. Um dia recebeu alta do hospital. No banco uma indenização pelo acidente lhe aguardava, complementada pela pensão por invalidez. Decidiu começar a escrever outro capítulo de sua vida, uma outra razão para estar vivo. Decidiu ainda em vida tornar-se anjo. Sua primeira missão foi voar para o sul da Tailândia, PhiPhi island, depois do Tsunami de 2004. Trabalhou como voluntário com o que pôde. Desde então segue o destino das tragédias. Terremoto, furacões etc, onde possa ir, e continuar seu trabalho de voluntário.

Recordo-me do Almir Klink, nosso navegador solitário tupiniquim. O que buscam estes homens? Do que fogem? O que os leva a estas escolhas? Pergunto-me se poderia fazer o mesmo.... concluo que já o faço, em certa medida, mas sem a ousadia de desafiar o mar. Consolo-me com a idéia de que Brasília não tem mar, daí não poder ter me tornado navegador dos sete mares. Fuga.

Cinco de março de 1991, meu dia oficial de partida para o mundo. Primeiro destino, com escala em Assuncion del Paraguay, vôo da LAP (Lineas Aereas Paraguayas, a.k.a., Latas Aéreas Peligrosas) rumo a Miami. Desde então já dei a volta ao mundo algumas vezes, visitei todos os continentes, à exceção da Antártida, e passei por uns 40 países. Os carimbos nos passaportes e as marcas na alma o provam. Solitário continuo minha caminhada. Coleciono aqui e acolá as imagens do que vivi, os gostos que provei, os aromas que cherei, as peles que toquei. Estranhamente me é raro olhar fotos antigas. Elas aguardam lá, empoeiradas no armário ou no hard disk. Há apenas o consolo de que um dia, caso algo similar a Paul me ocorra, haverá muito do livro de memórias para ler em meu leito de hospital. Vários nomes, datas, lugares e sentimentos a redescobrir, um outro myself.